segunda-feira, 26 de outubro de 2009

X-Men e Tolkien -Reunião de Cúpulas escondida em plena vista...


"E o primeiro fogo sobre o altar de Sauron foi aceso com a lenha cortada de Nimloth; e ela crepitou e foi consumida. Mas os homens se admiraram com o fumaceiro que dela emanou, tal que a Terra ficou à sombra de uma nuvem durante sete dias, até que ela lentamente se dissipou para o oeste. (...)E tudo estava
à espera da palavra de Ar-Pharazôn; e Sauron se recolheu para o círculo mais retirado do Templo, e os homens lhe traziam vítimas a serem incineradas".


Muitas pessoas às vezes acham meio difícil perceber as referências tolkienianas nos trabalhos da Marvel e DC pós anos 60. Várias alegam que somente histórias com criaturinhas fantásticas "hobbitianas" e cenários pseudo-medievais com necromantes e exércitos de goblinóides poderiam trair algum débito com Tolkien. Assim só Thor ou histórias na era hiboriana poderiam realmente conter tolkienismos ou , então, tramas ocasionais fantásticas de Vingadores ou X-Men

Em réplica a isso eu poderia dizer o seguinte: não são , realmente, os traços superficiais que qualificam um trabalho como sendo influenciado pela fantasia do autor britânico. Por motivos variados, por exemplo, digo pra quem quiser ouvir: Dragonlance , o cenário de fantasia medieval de Margareth Weiss e Tracy Hickman, com goblins, elfos,deuses e dragões é menos tolkieniano em muitos pontos essenciais do que a série Harry Potter, que, carecendo dos elementos superficiais, contém, todavia, simbolismos, imagens e nomes tão reminiscentes do Senhor dos Anéis que acho muito mais justo reconhecer o débito de Rowling para com Tolkien do que o de Weiss.

Nesse contexto, o exemplo visual abaixo é bem ilustrativo. No ano de 1977 saiu o Silmarillion , editado por Christopher Tolkien depois de uma longa espera por parte dos fãs. O texto do Akhalabêth continha essa descrição do templo de Sauron em Númenor, erguido como uma idolatria profana a seu mestre Morgoth na própria terra com que os Valar haviam presenteado os Edain, os humanos "fiéis" , redimidos parcialmente da Queda "bíblica".

Pois, depois da invasão, o Rei cedeu a Sauron e derrubou a Árvore Branca,dando então as costas totalmente à aliança de seus antepassados. Já Sauron fez com que fosse construído no topo da colina, no meio da cidade dos númenorianos, Armenelos, a Dourada, um templo enorme. E. na base, sua forma era a de um circulo. Ali, as paredes tinham quinze metros de espessura, e a largura da base era de cento e cinqüenta metros de um lado a outro, ao passo que as paredes se elevavam a cento e cinqüenta metros do piso e eram coroadas por uma enorme cúpula. E essa cúpula era toda recoberta de prata e se erguia cintilante ao Sol, de tal modo que sua luz podia ser vista a grande distância; mas logo a luz escureceu, e a prata ficounegra. Pois havia um altar de fogo no centro do templo, e na parte mais alta da cúpula havia um lanternim, por onde saía grande quantidade de fumaça
.
E não é que em uma história dos X-Men de 1978, Chris Claremont e John Byrne introduziram a cidadela do falso deus , Garokk, que havia dominado a Terra Selvagem , construindo sobre suas fossas geotérmicas uma cidade que era um domo abobadado, no centro do qual havia um templo onde Garokk fazia sacrifícios humanos queimando suas vítimas? Detalhe que a cidadela usando a energia que mantinha o clima da Terra Selvagem aquecido em relação ao restante do continente antártico estava causando uma "era glacial" no local, condenando toda a fauna e flora locais à morte pelo frio, tudo para garantir a noção garokkiana de " ordem e progresso". Comparem a descrição acima com a arte monumental de John Byrne ( no auge de sua inspiração) e seu parceiro Terry Austin.



Maiorzinha aí pra quem quiser ver direito:



E não devemos esquecer o fato de que o "Olho de Sauron" é uma versão do Olho do Deus Sol Egípcio e que Garokk é tido como um deus solar.

Digno de nota é que os mutantes haviam acabado de se confrontar com o xará de Sauron no Universo Marvel,Karl Lykos. Para quem não sabe,o Sauron marvético é um licantropo pterodáctilo dotado de poderes hipnóticos canalizados pelo "olhar de réptil" que costuma emitir um "raio escarlate" como um feixe que concentra a vontade maligna do vilão para perverter as mentes dos heróis, dominado-as e fazendo-as ver e sentir somente o que ele assim desejar.


Tanto Garokk quanto Sauron são criações de Roy Thomas, o maior homenageador marvete de Tolkien, criador da tradição das montarias alados do Cavaleiro Negro dos Vingadores: Aragorn, Boromir e Valinor...

Lykos evoca diretamente licantropo mesmo, é nisso que dá os pais humanos da Marvel batizarem seus filhos com nomes auspiciosos desse tipo, são tão proféticos quanto as mães élficas de Tolkien e seus "estels" e "espíritos de fogo", né mesmo Bruce "Banner"?).



Para completar a ironia tem ainda a total sincronicidade entre o comentário da Ororo, que Garokk estaria destruindo aquilo que tentava preservar , algo que Tolkien, em texto publicado nas cartas dele anos depois, também veio a dizer dos motivos do próprio Sauron. Ficando implícito que ambos queriam "queimar etapas" e atingir seus objetivos sem real preocupação com o custo dos métodos empregados.




Comparemos:

Ele seguiu o caminho de todos os tiranos: começando bem, pelo menos no nível que, apesar de desejar ordenar todas as coisas de acordo com sua própria sabedoria, ele no início ainda levava em consideração o bem-estar (econômico) de outros habitantes da Terra.

E no Mitos Transformados , texto só publicado em 1993

Sauron jamais alcançou esta etapa de loucura niilista; não objetava à existência do mundo, contanto que pudesse fazer o que quisesse com ele. E ainda tinha os resquícios de propósitos positivos, que descendiam do bem da natureza na qual ele começou: fora sua virtude (e então também a causa da sua queda, e da sua recaída) que ele amasse ordem e coordenação, e repugnasse toda a confusão e atrito dissipador. (Era a aparente vontade e força de Melkor para efetuar seus objetivos com rapidez e habilidade o que primeiramente havia atraído Sauron para ele.) De fato, Sauron fora muito parecido com Saruman, e portanto entendia-o rapidamente e podia adivinhar o que seria provável ele pensar e fazer, até mesmo sem a ajuda das palantiri ou de espiões; contudo, Gandalf iludiu-o e confundiu-o. Mas, como todas as mentes deste elenco, o amor de Sauron (originalmente) ou (depois) o simples entendimento de outras inteligências individuais era correspondentemente mais fraco; e embora o único bem real, ou motivo racional, em todo esse ordenamento, planejamento e organização fosse o bem de todos os habitantes de Arda (mesmo admitindo o direito de Sauron de ser seu senhor supremo), seus planos, a idéia vinda da sua própria mente isolada, tornou-se o objeto exclusivo de sua vontade, e um fim, o Fim, em si mesmo.


Juntemos isso com o comentário de C.S.Lewis

Of all tyrannies, a tyranny sincerely exercised for the good of its victims may be the most oppressive. It would be better to live under robber barons than under omnipotent moral busybodies. The robber baron's cruelty may sometimes sleep, his cupidity may at some point be satiated; but those who torment us for our own good will torment us without end for they do so with the approval of their own conscience
.

C S Lewis



Quanto da elaboração posterior de outros vilões do universo X não passaram a refletir esse tipo de raciocínio na caracterização? Magneto e Apocalipse vêm depressa à mente. E Magneto era outro vilão que pouco tempo antes havia dado as caras com um esconderijo secreto abobadado, jazendo diretamente debaixo de um vulcão ( vulcão hein? huummmm...) na Antártida, extraindo energia para sua base no poder geotérmico do magma. Coincidência? Eu duvido.



Parece que , instintivamente, caras como Chris Claremont e outros escritores de destaque da época como Kirby, Byrne,Englehart, Roy Thomas, Len Wein, Marv Wolfman Jim Starlin, Brian Talbot, já no fim dos setenta, mostravam uma percepção muito mais acurada para os tons de cinza no segundo Lorde das Trevas tolkieniano do que a crítica literária especializada que, via de regra só trabalha com inferência quando se trata de obras sancionadas pelo establisment acadêmico.

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